Senso incomum
As portarias, o mensalão e o "fator Carminha"
Há
muito venho denunciando que, nos últimos 24 anos, contados de 1988,
ainda não desenvolvemos uma adequada teoria das fontes. Ao lado disso,
também não desenvolvemos uma nova teoria da norma (não sabemos direito a
diferença entre regra e princípio), uma nova teoria da interpretação
(ainda não resolvemos os “dilemas do positivismo”, sendo que ainda há
muita gente que pensa que “interpretação é um ato de vontade”, isso para
dizer o mínimo), e, por último, falta-nos uma teoria da decisão,
assunto sobre o qual venho me debruçando nos últimos anos.
Na
verdade, falta-nos muito. Basta ver algumas das sustentações orais
feitas no Supremo Tribunal no caso “mensalão” (ups, devo ser multado,
pois usei de novo a palavra que querem proibir). Pensei que as
sustentações orais trariam grandes teses, teorias aprofundadas...
Mas,
parece que — por enquanto — a montanha está parindo um rato, na maioria
dos casos. Até a novela das oito, da Globo, serve de fonte. Hum, hum.
Deve ser o “fator Carminha” (que significa, mais ou menos, “defenda-se
atacando”). Não falo do mérito de cada acusação que pesa sobre cada um
dos réus; falo, sim, do conteúdo das sustentações. Quando se pensa que
“agora o advogado apresentará a tese e a matriz teórica que a sustenta”,
ele declama autores do senso comum teórico-dogmático (tenho ouvido cada
citação...!). Uma forte “sacada” de um dos causídicos foi trazida do
Direito norte-americano: uma juíza de lá teria dito que o parlamento faz
as leis; a Suprema Corte as cumpre... Sofisticado. Muito. Por tudo
isso, não é de admirar que não tenhamos elaborado nenhuma das teorias
acima elencadas (fontes, norma, interpretação e decisão).
Mas,
sigamos. O assunto de hoje ficará restrito à ausência de uma adequada
teoria das fontes, embora o tema não escape às outras três dimensões.
Isso aparece nas questões mais simples, como, por exemplo, a
sobrevivência (recepção) de uma legislação atrasada e contrária a
Constituição, valendo citar dos mais variados dispositivos dos
principais códigos pátrios. O que quero dizer é que se fizéssemos
efetivamente uma filtragem hermenêutico-constitucional no nosso
ordenamento, milhares de dispositivos virariam pó. Não falo só dos atos
normativos anteriores a Constituição; falo também de um conjunto de atos
— milhares — posteriores à Constituição, absolutamente
inconstitucionais, como, por exemplo, o cipoal de portarias, resoluções,
decretos, etc., que nos atazanam a vida.
Alguns exemplos são
contundentes. Cito o seguinte pelo seu aspecto simbólico. Falo do
episódio que envolveu a aplicação, por centenas de juízes, de um
dispositivo não votado, introduzido de forma não muito bem explicada no
corpo da Lei 9.639/98 (parágrafo único do artigo 11). Nota: o “não muito
bem explicado” é eufemismo meu. Sigo. Naquele ano (1998), o Congresso
Nacional aprovou projeto do Poder Executivo concedendo anistia aos
agentes públicos que retiveram contribuições previdenciárias dos
segurados da Previdência Social. Tal matéria constou no artigo 11 do
projeto. Mas o texto que foi à sanção presidencial levou o acréscimo do
parágrafo único, estendendo a anistia aos sonegadores de tributos. O
presidente da República sancionou a lei sem perceber a irregularidade.
Constatado o equívoco da sanção, o ato foi republicado no dia seguinte.
Pois bem: com base na “vigência”[1]
“por um dia” do parágrafo fantasma, começaram a ser concedidas
anistias a todas as pessoas envolvidas nos crimes alcançados por esse
“acréscimo”, sob fundamentos do tipo “em nome da segurança jurídica, o
texto publicado, apesar de erro, existe e entrou em vigor”, etc.,
aduzindo-se ainda citações doutrinárias (sic) acerca da interpretação do artigo 1º, parágrafo 4º,
da LICC...! Em face disso, o Ministério Público Federal teve que
ingressar com milhares de recursos extraordinários, a ponto de o Supremo
Tribunal Federal, ao indeferir o HC 7.7724-3, levar a matéria a
plenário, declarando inconstitucional o referido dispositivo. No fundo,
decidiu-se a coisa mais prosaica do mundo: a de que uma lei fantasma
não pode gerar efeitos no mundo jurídico...! O inusitado da questão é
que um grupo expressivo de juízes não conseguiu resolver o “problema
gerado por uma lei fantasma”, tendo que ser chamada a Suprema Corte para
solver o litígio, ficando patente a crise de baixa constitucionalidade,
pela metafísica equiparação entre vigência e validade que serviu de
base para as decisões que determinaram o arquivamento (sic)
dos processos. “Puro” positivismo exegético em pleno século XX; afinal
houve uma verdadeira recusa na realização do controle de
constitucionalidade difuso! Placar: Dogmática do senso comum 10x0 Teoria
das Fontes.
Mais antigo é o exemplo do conflito de dispositivos legais (Lei 8.069 v.
Lei 8.072). Explicando: o artigo 263 da Lei 8.069, de 13 de julho de
1990, que dispôs sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente,
acrescentou um parágrafo único aos artigos 213 (estupro) e 214 do Código
Penal (atentado violento ao pudor), agravando a pena quando cometido o
crime contra pessoa menor de 14 anos (a pena estabelecida foi de 4 a 10
anos). Entretanto, a Lei 8.072, do mesmo ano, que classificou os crimes
hediondos, além de agravar a pena de estupro, criou uma causa de aumento
de pena, aumentando-a da metade quando praticado o crime contra pessoa
menor de 14 anos.
No caso em tela, criou-se, destarte, o seguinte impasse: na ocasião, o artigo 213, v.g, passou a estabelecer que quem praticasse estupro contra pessoa maior (caput
do artigo), receberia uma pena de 6 a 10 anos; já no parágrafo único
tinha-se que quem praticasse o crime contra pessoa menor de 14 anos, a
pena seria menor, ou seja, de 4 a 10 anos. Duas correntes doutrinárias e
jurisprudenciais se formaram: uma defendendo a validade do
parágrafo único, é dizer, admitiam que quem praticasse estupro contra
criança poderia receber pena menor que quem estuprasse uma pessoa
adulta, e a outra defendendo a tese de que o citado parágrafo único era
inadmissível. Na verdade, pouco importou — para uma determinada
corrente doutrinária e jurisprudencial — a teratologia resultante do
paradoxo que é a imposição de uma pena mais branda a quem estupra uma
criança em comparação com aquele que estupra uma mulher adulta... O que
importou foi fazer uma “boa hermenêutica”; o importante foi “resolver,
com competência dogmática, ‘neutralmente’, as antinomias” do sistema...
E
não se diga que a não aplicação da pena mais benigna feriria o
princípio da reserva legal. Afinal, ao que sei, o princípio da reserva
legal, antes de estar no Código Penal, está na Constituição. Enfim,
tamanha foi a dimensão da crise, que o establishment jurídico-dogmático não conseguiu “resolver o problema” no plano da hermenêutica. Ou seja, o “sistema” teve
que recorrer ao “legislador racional” que, mediante a edição da Lei
Federal 9.291, de 4 de junho de 1996, revogou os parágrafos únicos em
questão. Isto é, a comunidade jurídica não conseguiu resolver o
problema. Porque interessava, apegou-se à concepção mais dogmática.
Poderia ter feito melhor, pois não? Já em outras oportunidades, a mesma
comunidade disse o contrário. Uma no cravo, outra na ferradura. Por
exemplo, na hora de cumprir o artigo 212 do CPP, há juristas que dizem
que onde está escrito que “o juiz não poderá...”, leia-se “o juiz
poderá...” e sem qualquer alusão à jurisdição constitucional (sobre esse
assunto, volto em breve).
Essa questão das fontes pode ser
vista também no “poder de violência simbólica” das súmulas “comuns” e
nas contemporâneas súmulas vinculantes. Há matérias sumuladas contrárias
a lei e a Constituição. Quem não lembra da Súmula 2, do STJ, que
praticamente acabou com o Habeas Data? A própria Súmula Vinculante 11
não obedeceu o seu próprio rito. A SV 5 contraria a Constituição.
Antigamente, fez-se a Súmula 554, “alterando” o Código Penal. Furto e
sonegação de tributos são tratados de forma absolutamente diferenciada;
na verdade, para o legislador e também para o Poder Judiciário e o
Ministério Público, é mais grave furtar do que sonegar, como se não
existisse Constituição e tampouco a obrigação de se aplicar o direito de
forma isonômica. E mais não é preciso dizer, neste momento. Imaginemos o
número de atos normativos (que não tem o status de lei ou súmula) que contrariam a Constituição?
A
dramaticidade da ausência de uma teoria das fontes aparece mais
fortemente no plano da legislação de “quarta divisão”, como é o caso das
portarias, resoluções, etc. Os juristas brasileiros parecem ter uma
paixão pela legislação “baixo clero”, como portarias, resoluções e
instruções normativas. Recentemente, denunciei, aqui na ConJur, a edição impune da Portaria 75, do Ministério da Fazenda, que determinou I —
a não inscrição na Dívida Ativa da União de débito de um mesmo devedor
com a Fazenda Nacional de valor consolidado igual ou inferior a R$
1.000,00 (mil reais); e II — o não ajuizamento de execuções
fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja
igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais). País rico é outra coisa. Com 10 devedores já daria para comprar algumas macas para os hospitais públicos, onde os patuleus
— que pagam seus impostos — tomam soro em pé. Inacreditável. Tão
inconstitucional é a portaria que o motorista do STF assim a declararia
(tenho convicção disso!). Mas, até agora, nada. Bom, para um país que já
aplicou “uma lei fantasma” (Lei 9.639), melhor é chamar o velho Barão
do Itararé.
Pois a ConJur publicou na edição do dia 4 de agosto de 2012 (ver aqui)
uma notícia que desnuda essa problemática tratada nesta Coluna. Diz a
notícia que juízes e desembargadores do Trabalho não podem mais usar
regra administrativa para arquivar processos de execução fiscal. Isso
porque os magistrados vinham aplicando a Portaria 815/2011 do Ministério
da Fazenda para não julgar casos cujo valor é inferior a R$ 10 mil. De
acordo com decisão
do corregedor-geral do Trabalho, ministro Barros Levenhagen, a regra só
se aplica aos membros da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a
PGFN.
Bingo! Absolutamente correta a decisão do corregedor-geral.
Desde quando uma portaria tem esse “poder normativo”? Trata-se de um
escândalo hermenêutico. Todos os dias o Brasil é tomado por portarias,
resoluções, sinais de fumaça, éditos reais, instruções de mandalete de
tudo o que é tipo, com “força normativa” maior que as leis e maior do
que a força da Constituição.
Há milhares de portarias desse
quilate, emanadas de Ministérios e repartições de toda a ordem. E o
engraçado é que o funcionalismo público segue cegamente o seu conteúdo
(principalmente quando lhe interessa). No Ministério da Educação ficam
discutindo “pareceres normativos”. E por aí afora. E o engraçado é que
surgem várias “teorias” sobre a “literalidade das portarias, resoluções e
pareceres”. Além disso, há pareceres sobre o conteúdo de pareceres,
pareceres sobre o sentido de dispositivos de portarias. O que a
autoridade teria querido dizer? Qual é o “espírito” do parecer normativo
X? Ora, bolas!
E ficamos fazendo dissertações e teses sobre
Direito Constitucional, força normativa da Constituição, etc. Os alunos
invocam Konrad Hesse, Canotilho, Hassemer, Ferrajoli. Com veemência.
Ora, qualquer burocrata tem mais poder que o Congresso Nacional.
Qualquer burocrata de terrae brasilis “sabe — e pode — mais”
que o Supremo Tribunal Federal. Sua palavra é final. Definitiva. Ou
seja, estamos diante de uma grande fancaria. O guarda da esquina tem fé
pública para multar (quem controlará o guarda?). O recurso aos órgãos
administrativos são “decididos” em uma ou duas linhas, por carimbo. Uma
portaria do INSS vale mais do que todo o capítulo de Direito
Previdenciário da Constituição. Por essa e por outras, a solução parece
mesmo é estocar comida e construir um bunker. Antes que façam uma
portaria regulando a “estocagem de comida e dando outras providências” e
instruções normativas acerca de como se “deve construir bunkers”,
revogando as disposições em contrário. Pois é. Mas o legislador não se
ajuda muito. A própria Constituição diz que são bens da União aqueles
que lhe pertencem e aqueles que venham a lhe pertencer... O Código de
Águas estabelece que águas subterrâneas são as que correm por debaixo da
terra... (talvez por isso a dogmática jurídica pense que tudo é tão
“simples”, ao dizer, por exemplo, que, na legítima defesa, “agressão
atual é aquela que está acontecendo e iminente é aquela que está prestes
a acontecer” e que “escalada é subir em algo”). No Rio Grande do Sul,
há uma lei que estabelece as diretrizes para assar churrasco, dando,
além disso, outras providências. Fico imaginando um “churrasco
ilegal”... O próprio Congresso Nacional coloca o seu Regimento Interno
acima da Constituição. Em vários casos. Veja-se a questão da discussão
“sessões-votações secretas”. E o STF diz que é matéria interna corporis.
Ótimo. Poderíamos dizer, então, que, se no Regimento Interno da Câmara
dos Deputados fosse colocada uma regra estabelecendo o chicoteamento dos
deputados que permitirem que alguma assessora coloque filmes eróticos
na rede, esse dispositivo seria válido? Os deputados que não permitem
esses atos de sua assessoria já podem encomendar a construção de um
pelourinho?
Por tudo isso e no meio de tudo isso, com esse cipoal
de atos normativos e com tantos órgãos
fiscalizadores-repressores-controladores (PF, CGU, TCU, TCE, TCM, BC,
mais de 10 Procuradorias Federais, MPF, MPE, etc), ainda assim acontece o
escândalo do “inominável”. E o engraçado é que, nas suas defesas, todos
esgrimam esse cipoal a seu favor. Ou se chama à colação o “efeito
Carminha”. O cipoal que (n)os pega é o cipoal que (n)os salva. Claro:
como ninguém se entende nesse país, por caminhos tortos, por vezes se
acerta o rumo. Ou se erra...
[1] Quando é que vamos nos convencer que vigência não é igual à validade?
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
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Revista Consultor Jurídico, 9 de agosto de 2012
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